Universo tributário: A outra indústria da multa

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Volta e meia, notícias sobre vultosas quantias arrecadadas com aplicação de multas são divulgadas na imprensa. É, pois, natural questionar o uso de multas para fins exclusivamente arrecadatórios. Mas não parece absurdo pressupor que outros agentes, que não o Estado, também fomentem uma indústria própria. Os argumentos descabidos contra a aplicação cumulativa das multas do art. 44, da Lei nº 9.430, de 1996, dão suporte a essa ilação.

A pessoa jurídica sujeita à apuração do imposto de renda com base no lucro real anual deve recolher estimativas mensais, para que ao fim do período de apuração seja realizado o ajuste. A falta de recolhimento dessas estimativas, na redação original do art. 44 da Lei nº 9.430, de 1996, poderia ensejar a aplicação simultânea de multa isolada (§1º, IV) e de multa de ofício (§1º, I), quando não recolhido o tributo apurado no ajuste anual.

O entendimento fazendário, no entanto, não prevaleceu no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — CARF. O tribunal administrativo, após diversos julgados, editou a Súmula nº 105, segundo a qual a multa isolada por falta de recolhimento de estimativas não pode ser exigida simultaneamente com a multa de ofício por falta de pagamento do tributo apurado no ajuste.

Não obstante convincentes, os fundamentos invocados nos paradigmas não procedem. Vejamos os mais relevantes, cotejando-os ainda com a atual redação do art. 44 da Lei nº 9.430, de 1996, a fim de verificar se a súmula deve ser mantida — se é que mereceu algum dia ser editada.

Bis in idem

Um argumento comum dos contribuintes é o do bis in idem. A imposição de duas multas configuraria dupla punição pelo mesmo fato, o que seria vedado pelo ordenamento jurídico. O argumento parte de duas premissas equivocadas.

Primeiro, na situação descrita pela súmula não há fato único. O contribuinte ao frustrar o regime de estimativa pratica num momento a infração do antigo art. 44, §1º, IV, da Lei nº 9.430, de 1996 — não pagamento da estimativa —; posteriormente, no momento do ajuste anual, pratica a infração do art. 44, §1º, I, da mesma lei — não pagamento do tributo devido no ajuste. Há, pois, dois fatos em momentos distintos.

Segundo, a previsão de duas sanções para um mesmo fato, por si só, não configura bis in idemBis in idem é a dupla responsabilização pela prática de um mesmo fato, o que não é o mesmo que a previsão de duas ou mais sanções para uma mesma hipótese. O Código Penal por vezes prevê como pena, simultaneamente, a reclusão e a aplicação de multa. Também admite a cumulação de penas pela prática de um só fato nos casos de concurso formal impróprio. Da mesma forma, a Lei de Improbidade Administrativa igualmente admite a aplicação de diversas sanções para a prática de um único fato. A lista de exemplos poderia seguir indefinidamente: Código de Trânsito Brasileiro, Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, Lei Anticorrupção etc. Em nenhum desses casos há bis in idem. Inexiste no ordenamento jurídico vedação à aplicação de mais de uma sanção pela prática de um mesmo fato, o que não se admite é que o agente seja acusado, processado e responsabilizado duas vezes pelo mesmo fato — e este, obviamente, não é o caso da cumulação da multa de ofício com a isolada.

Em alguns julgados, o argumento do bis in idem, talvez pela sua clara incorreção, assume feição mais sutil. Alega-se que a base de cálculo e a alíquota da multa isolada são idênticas às da multa de ofício. Mas por que isso seria vedado? Nada há no ordenamento jurídico que impeça tal situação. Nesse campo, a única vinculação implícita passível de ser concebida ao legislador é a da manutenção de um certo vínculo entre a infração praticada e a base de cálculo eleita – e mesmo isso pode ser objeto de discussão. Mas, mesmo admitida a restrição, o legislador a teria observado na espécie.

Além disso, a identidade entre bases de cálculo e alíquotas não existe desde a vigência da Lei nº 11.488, de 2007, que alterou o dispositivo. O novo texto prevê uma multa isolada de 50% sobre o valor do pagamento mensal que deixar de ser efetuado e uma multa de ofício de 75% sobre a totalidade ou diferença de imposto apurado anualmente. É bem verdade que em alguns casos, isso pode significar a identidade das bases de cálculo, mas, como dissemos no parágrafo precedente, não há nada no ordenamento que impeça tal situação.

Consunção

Aparentemente mais consistente é o argumento de que a segunda infração — não pagamento do tributo devido no ajuste anual —, por ser mais grave, absorveria a primeira — não pagamento da estimativa —, em virtude do princípio da consunção. Veja, nesse sentido, o Acórdão nº 01-05838 da 1ª Turma do Conselho Superior de Recursos Fiscais:

“Quando várias normas punitivas concorrem entre si na disciplina jurídica de determinada conduta, é importante identificar o bem jurídico tutelado pelo Direito. Nesse sentido, para a solução do conflito normativo, deve-se investigar se uma das sanções previstas para punir determinada conduta pode absorver a outra, desde que o fato tipificado constitui passagem obrigatória de lesão, menor, de um bem de mesma natureza para a prática da infração maior.

No caso sob exame, o não recolhimento da estimativa mensal pode ser visto como etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. A primeira conduta é, portanto, meio de execução da segunda.

Com efeito, o bem jurídico mais importante é sem dúvida a efetivação da arrecadação tributária, atendida pelo recolhimento do tributo apurado ao fim do ano-calendário, e o bem jurídico de relevância secundária é a antecipação do fluxo de caixa do governo, representada pelo dever de antecipar essa mesma arrecadação. Assim, a interpretação do conflito de normas deve prestigiar a relevância do bem jurídico e não exclusivamente a grandeza da pena cominada, pois o ilícito de passagem não deve ser penalizado de forma mais gravosa que o ilícito principal. É o que os penalistas denominam ‘princípio da consunção’.”

Embora persuasiva ao leitor mais desatento, a tese não tem dentes. Ainda que se admita a aplicação de institutos do Direito Penal ao Direito Tributário Penal, restam dúvidas sobre até que ponto eles podem ser aplicados indiscriminadamente.

O chamado princípio da consunção, conquanto amplamente aplicado na esfera penal, não fornece critérios pacíficos para todos os casos, e a própria doutrina penal diverge sobre os critérios adequados para sua aplicação.

Não está correta a afirmação de que a consunção deve ser sempre aplicada de forma que a infração cujo bem tutelado seja mais importante absorva a outra infração. Basta lembrar a discussão acerca da Súmula nº 17 do Superior Tribunal de Justiça, que admitiu a absorção de um crime mais grave (falsificação de documento público) por um crime menos grave (estelionato).

Importa não esquecer também que o princípio da consunção, amiúde, perde terreno nos casos de concurso formal e material de crimes, mesmo quando diante de tipos penais cujos bens jurídicos tutelados são os mesmos.

Ademais, na consunção vai pressuposta a teoria finalista da ação, que dá à intenção do agente um papel central na definição do tipo penal, e todos sabemos que, em geral, a responsabilidade pelas infrações à legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato (art. 136, CTN) — o que é suficiente para exigir cautela do operador na aplicação da consunção na esfera tributária.

E, last but not least, diferentemente do que afirmou o relator do acórdão, a infração ao regime das estimativas não é sempre necessária ao cometimento da infração ao ajuste anual (chamemo-la assim). Em tese, são possíveis três combinações diferentes: a) a aplicação exclusiva da multa isolada por infração ao regime de estimativas; b) a aplicação exclusiva da multa de ofício por infração ao ajuste anual, com a cobrança do tributo devido; e c) a aplicação cumulativa das duas infrações.

Exemplo do caso “a” é a hipótese em que o contribuinte infringe o regime das estimativas, mas apura prejuízo fiscal no momento do ajuste anual — aqui haverá a aplicação exclusiva da multa isolada. Enquadra-se no caso “b”, a hipótese em que o contribuinte, no momento do ajuste, deduz despesa indevida, mas que não foi levada em conta no recolhimento mensal, porque, em geral, não se permite dedução de despesas da base de cálculo no regime das estimativas — aqui somente haverá aplicação da multa de ofício cumulada com a cobrança do tributo. Por fim, é espécie do caso “c” a situação — mais corriqueira, é verdade — em que o contribuinte omite receitas tanto na apuração das estimativas, quanto no ajuste anual.

Proporcionalidade

Um outro argumento é que a aplicação cumulativa das multas seria desproporcional. Aqui, cumpre citar novamente o Acórdão nº 01-05838 do Conselho Superior de Recursos Fiscais:

“Por fim, a última função da base de cálculo atende a exigência de proporcionalidade entre o delito e a sanção. Se a conduta visa coibir falta de pagamento de tributo, a base de cálculo apropriada é o montante não pago. Se, por outro lado, a conduta ilícita refere-se ao descumprimento de um dever instrumental não relacionado à falta de recolhimento de tributo, não seria razoável adotar essa grandeza como base de cálculo. Nessa mesma linha, a adoção de bases de cálculo e percentuais idênticos em duas regras sancionadoras faz pressupor a identidade ou, pelo menos, a proximidade da materialidade dessas condutas ilícitas. Ou seja, sanções que têm a mesma base de cálculo devem, em princípio, corresponder a idêntica conduta ilícita.

Essas conclusões aplicadas à legislação tributária evidenciam o desarranjo na adequação das regras sancionadoras atualmente vigentes no imposto sobre a renda, em que ofensas a bens jurídicos de distintos graus de importância para o Direito são atribuídas penas equivalentes, sem que se atente ao princípio da proporcionalidade punitiva. A punição prevista no artigo 44 da Lei n° 9.430/96 pelo não-recolhimento do tributo (75% do imposto devido) é equivalente a punição prevista no mesmo artigo pelo descumprimento do dever de antecipar o mesmo tributo (75% do valor da estimativa). Em certos casos, a penalidade isolada chega a ser superior a multa de oficio aplicada pelo não recolhimento do tributo no fim do ano.”

A questão da desproporcionalidade entre as duas infrações é subjetiva. O legislador, ao menos na redação original do dispositivo, ponderou a situação de maneira diversa, e o aplicador da lei deve manter uma certa deferência à opção legislativa, evitando arvorar-se na condição de legislador nos casos em que a norma jurídica não é absurdamente desproporcional.

Em defesa da ponderação feita pelo legislador, é bom lembrar que também é desproporcional punir o contribuinte do exemplo “c” acima no mesmo patamar do contribuinte do caso “b” — que era o que acontecia na redação original da Lei nº 9.430, de 1996, quando se aplicava a Súmula nº 105 do CARF.

De todo modo, a Lei nº 11.488, de 2007, reduziu a multa isolada para o patamar de 50%, o que é suficiente para afastar a alegação de desproporcionalidade.

Retomando

Em boa hora, o tribunal administrativo, diante da alteração promovida pela Lei nº 11.488, de 2007, mesmo sem enfrentar todos os pontos que levantamos acima, reviu seu posicionamento, no que diz respeito às infrações praticadas após a vigência da lei.

O assunto, porém, está longe de ser considerado pacífico e certamente será levado aos tribunais. Alguns Tribunais Regionais Federais possuem posição favorável à Fazenda Nacional, mas a 2ª Turma do STJ possui decisão contrária à aplicação cumulativa das sanções (REsp nº 1.496.354/PR). Com a mudança de entendimento do CARF é possível prever que a matéria ganhará relevo e será analisada com maior profundidade pelas Cortes Superiores.

Resta saber se uma outra indústria, a das decisões massificadas que ignoram os argumentos das partes, vai dar razão aos contribuintes. Veremos.

Via Jota.info

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